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Funcionários de um comércio no bairro do Grajaú, em São Paulo: "racismo" como injúria a nordestinos |
Todas as profissões possuem vocabulário próprio, um glossário que permite comunicação mais efetiva entre os que trabalham em determinada área do conhecimento humano. Com o Direito não é diferente. As letras forenses são plenas de particularidades e aforismos próprios, familiares aos que militam nas lides judiciais, mas bastante estranhos à população em geral.
Alguns problemas surgem porque, ao contrário do que observamos em outras ciências, os termos jurídicos têm, não raro, um segundo significado, comum e muito difundido, circunstância que frequentemente leva confusão aos que batem às portas dos tribunais em busca de justiça.
São palavras como: "queixa", "exceção", "suspeição", "competência", cujo significado popular difere, em muito, do sentido técnico, muitas vezes bastante difícil de ser explicitado ao leigo.
Um dos exemplos mais veementes dessa dicotomia é o vocábulo "racismo".
DebateNuma série de episódios recentes, de ataques a nordestinos e outros atores sociais, o termo voltou a movimentar o debate no país. Para o senso comum, "racismo" significa toda e qualquer forma de "preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior" (Houaiss eletrônico, 2009), englobando condutas variadas, que vão da simples ofensa verbal a atos sociais discriminatórios ou violência física.
Em sentido técnico, no entanto, o termo remete a "crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor", tipificados pela Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que usa, nas diversas figuras penais, frases como: "impedir ou obstar o acesso", "negar ou obstar emprego", "recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso", "recusar hospedagem", "recusar atendimento", "impedir ou obstar casamento", impedir ou obstar convivência social" e outros comportamentos, sancionados com penas que variam de um mínimo de um a um máximo de cinco anos de reclusão, cumulados ou não com multa.
São condutas ligadas à ideia de exclusão, de eliminação, de óbice concreto ao exercício de um direito, ao sentimento íntimo de proscrição do outro, que torna tais condutas desprezíveis.
É necessário, no entanto, diferenciar esses crimes da injúria (ofensa verbal), qualificada por "elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência", prevista pelo art. 140, §3°, do Código Penal (com redação determinada pela Lei n° 10.741, de 2003) e que recebe pena abstrata de "reclusão de um a três anos e multa".
Mal comparando, para a lei, uma coisa é impedir alguém de entrar num restaurante ou tratá-lo mal por ele ser negro ou nordestino. Outra é injuriar alguém, com base em ofensas de conteúdo racial.
Tema bastante polêmico, não raro vemos nos noticiários pessoas, atingidas em sua honra por expressões alusivas à origem social ou étnica, dizendo-se vítimas de racismo e indignadas porque a autoridade policial não tipificou a conduta na Lei n° 7.716/89, mas sim na injúria prevista no Código Penal. A própria mídia, por vezes desinformada, concorre para essa confusão e acaba, involuntariamente, por estimular o atrito, inquinando como faltosas condutas funcionais absolutamente corretas.
Injúria x racismoImporta esclarecer que a Justiça tem peculiaridades e o autor do delito, de uma forma ou outra, seja qual for o
nomen juris dado ao fato, será efetivamente responsabilizado.
Necessário anotar, enfim, que eliminar tais comportamentos não é tarefa policial. É preciso, mais. É urgente que os homens se conscientizem de sua igualdade intrínseca e de que a cor da pele, a religião ou a origem social não os qualifica como melhores seres humanos.
Assim como o Cavaleiro Inexistente, de Italo Calvino, precisamos abandonar a narcísica armadura reluzente que nos aniquila para poder encontrar o outro, em toda sua dimensão, na divina beleza de sua diversidade. Parafraseando a frase de Freud ao encerrar a XXXIª das
Novas Conferências Introdutórias à psicanálise (1933:102), "lá onde está o Id deverá estar o Ego". Mas esse é um trabalho para a cultura e não para o Direito Penal.
Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo é o 5° Promotor de Justiça da Infância e da Juventude de São Paulo
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